O valor da extrema-direita no avanço civilizatório
Sejamos justos. A guinada para extrema-direita é perfeitamente compreensível. A frustração e o desencanto com a vida faz muita gente desejar soluções fáceis para problemas complexos.
Os tempos sombrios em que estamos vivendo nos últimos anos, não só no Brasil, mas no mundo, pode dar a impressão de um retrocesso profundo e definitivo. Mas não é bem assim. Desde os primórdios da raça humana, a força do desenvolvimento civilizatório avança como um rolo compressor em todas as sociedades. Uns com mais ligeireza do que outros, mas é inegável que vivemos em um estado de direito muito mais democrático do que no século passado, por exemplo.
Muito cedo o homem se conscientizou de que era preciso criar um conjunto de regras de convivência ou não haveria futuro possível. E talvez nem presente. Somos uma raça orientada geneticamente para viver em grupo, e quando os grupos crescem demais, os problemas de relacionamento crescem junto, principalmente porque a diferença de visão e opinião sempre foi marca registrada de nossa espécie. A consequência natural foi o nascimento da política como forma de mediar conflitos e buscar meios termos que, se não agradam todo mundo, pelo menos resguardam a possibilidade de uma convivência mais ou menos harmônica.
A despeito da resistência dos ultraconservadores, movimentos de avanço, como os do empoderamento feminino, da luta contra o racismo e o preconceito com LGBTIs, entre outros, caminham lentamente para, em algum momento, deixarem de ser debatidos por nações civilizadas, tal será sua normalização, assim como aconteceu com o voto feminino e a abolição do trabalho infantil, só para dar dois exemplos.
Nenhum avanço sólido é conquistado de um dia para o outro. É como o nosso aprendizado. Ele se dá aos poucos. É claro que revoluções aconteceram e ainda acontecem, mas quando o novo poder submerge, se não for democrático, não conseguirá resistir eternamente. Mas e Cuba? Cuba está caindo pelas tabelas. A União Soviética já caiu faz tempo e a China virou uma nação misógina. Ainda temos algumas nações teimosas, mas como eu disse, em certos lugares, a civilização demora mais do que em outros para avançar. Mas sua marcha é inexorável.
Nosso cérebro, a propósito, tem grandes problemas com mudanças radicais de qualquer tipo. Alterações traumáticas em nosso dia a dia provocam insegurança, ansiedade e toda ordem de distúrbios psicológicos. Por isso preferimos passagens mais lentas, tanto em nossa vida privada como nas transformações sociais e culturais inerentes a qualquer grupo social. E quanto mais conservador é o sujeito, maior será sua dificuldade em lidar com mudanças de qualquer tipo. Aparentemente é uma questão psicológica que acaba inconscientemente acionando o mecanismo de defesa do cérebro ao sinal de qualquer transformação. Mais do que ninguém, eles não sabem lidar com mudanças. Aparentemente sequer entendem sua relevância e valor.
É por isso que as pautas do conservador raiz são sempre um obstáculo ao avanço, principalmente dos costumes. Ao contrário, sempre buscam levar a sociedade para lugares que ela já abandonou faz tempo e que, em geral, apresentam pouca incidência de luz. Acham mais aconchegante, presumo.
O ultraconservador gosta de quem fala grosso, de quem enfrenta todo mundo, que fala as “verdades” doa a quem doer, que dizem o que queremos ouvir (mesmo que seja impossível de cumprir) e que apontam o dedo (ou a arma) para um inimigo imaginário responsável por todas as nossas agruras. É pródigo em defender a família, mesmo aquele que casa e separa várias vezes, sem esquecer as amantes, é claro. O uso distorcido da religião também é uma característica forte no extremista de direita. Noam Chomsky diz que essas pessoas devem achar que Deus é um imbecil, que não percebe as interpretações criativas que invertem o que Ele de fato quis dizer.
Mas sejamos justos. A guinada para extrema-direita é perfeitamente compreensível. A frustração e o desencanto com a vida faz muita gente desejar soluções fáceis para problemas complexos. É perfeitamente natural que as pessoas tentem se agarrar em ideias que aparentam ser um porto seguro no meio da tempestade. Que diminuam a pressão emocional e deixem as coisas se assentarem. Que permitam por um momento esquecer que os outros existem e possamos pensar apenas em nós mesmos. Que permitam que despejemos todo nosso ódio e rancor acumulados e reprimidos contra aqueles que não compartilham destes mesmos desejos. É compreensível, mas inaceitável.
Porém, ao olhando de uma maneira mais abrangente para a história da humanidade, é preciso admitir que estes movimentos têm um valor fundamental no processo civilizatório.
Meu amigo Magrão diz que “a maldição move e a bênção relaxa”. Quando atingimos um estado que aparentemente nos parece harmônico e próximo de nosso ideal, a tendência natural é relaxar, diminuir a necessidade de protestar, de lutar por alguma coisa, mas, principalmente, defender o que já se conquistou. Dá a sensação de que não há mais volta, que o passado foi superado e só viveremos sob um céu azul resplandecente. É a maldita zona de conforto.
Para o bem ou para o mal, o Paraíso não existe e a História, como sempre, está aí para nos decepcionar. A zona de conforto paralisa e acaba por prejudicar a evolução. É gostosa, mas é terrível. Graças aos extremistas somos obrigados de tempos em tempos a voltar a lutar pelo avanço da civilização, o que, certamente, dá muito trabalho. Se dependesse apenas de nossa vontade, muito do que usufruímos hoje sequer existiria.
É justamente nos momentos em que as conquistas passadas estão sob ameaça, que o processo civilizatório tem a chance de se renovar e se fortalecer. A civilização, quando ameaçada, se dá conta de que precisa de anteparos legais para evitar o retrocesso. Em geral, depois da tempestade, novas estruturas são criadas e alimentadas para este fim. Leis são criadas, processos educacionais são ativados e a sociedade se mobiliza para desenvolver uma cultura que aos poucos abandone o que aciona a marcha-ré da História. Os judeus usam uma expressão sobre o Holocausto que resume esse processo: “Nunca mais!”.
Como se sabe, aprendemos com os erros. Assim também é a civilização. Só pra dar alguns exemplos óbvios, o crack da bolsa em 1929 obrigou o sistema financeiro a criar mais rígidos processos regulatórios e as bolsas de valores do mundo todo são hoje mais seguras. A Segunda Guerra promoveu a criação da ONU, que por sua vez criou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Constituição Brasileira de 1988 foi uma reação direta à ditadura militar. A humanidade sempre sai mais forte dos conflitos.
É como o caso dos criminosos. Quando são inventados sistemas de proteção para inibir o crime, eles, cedo ou tarde encontram formas de burlá-lo. E a sociedade avança e cria outro sistema mais seguro. E os criminosos, talvez a categoria mais criativa do mundo, novamente encontram maneiras de driblar a proteção criada. E segue o jogo.
Retrocessos difíceis de se corrigir em tempos de paz, ganham impulso e apoio da sociedade quando de alguma forma ameaçam de forma flagrante o status quo conquistado. Por exemplo, existem movimentos crescentes para eliminar a militarização das polícias, nascidas e criadas não para proteger a sociedade, mas para controla-la. Mas a resistência a esta mudança é poderosa. Talvez, quem sabe, qualquer tipo de movimento mais fora da curva das forças de segurança contra a democracia, como se tem aventado ultimamente, possa dar maior espaço para um debate mais profundo. Quem sabe?
A propósito, o progresso social levou o ser humano a criar a democracia, que logo se transformou em um dos pilares do mundo civilizado. Mas nada é perfeito e sem necessidade de aprimoramento. Winston Churchill teria dito que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras. Até hoje, de fato, a democracia tem suas falhas. Por exemplo: a classe dominante, ou a Casa Grande como diz a esquerda não se utiliza das mesmas ferramentas que a população. É de praxe que os donos do dinheiro usem seu poder para fazer mudanças nas leis que só lhes favoreçam. Mais uma vez é compreensível, mas inaceitável. Para nós, os simples mortais, os da Senzala, só nos resta o voto. Inclusive para tentar criar freios à influência insidiosa do poder econômico no processo democrático.
Mesmo assim, ainda não inventaram nenhum sistema. A democracia vem provando ser o único regime que consegue manter, mesmo que às vezes de forma frágil, a liberdade, a justiça, a paz, os direitos e o bem estar da população.
Entretanto, a democracia só funciona em sua plenitude com instituições sólidas. Não existe democracia sem Congresso, sem Sistema Judiciário, sem Poder Executivo. Desde que, é claro, sejam independentes e harmônicos entre si, como pregam as constituições modernas. Uma imprensa livre, o respeito aos Direitos Humanos e à liberdade de expressão também são suporte de um sistema democrático. Mas atenção: liberdade de expressão, como tudo, tem limites. É assim desde que inventaram processos judiciais para tratar de crimes contra a honra, a injúria e a difamação. Sei que às vezes fica difícil entender a diferença entre crítica e ofensa, mas existem exemplos esclarecedores.
Na Alemanha, por exemplo, um país que ninguém nega que seja democrático, falar de nazismo é crime; se eu acusar alguém de pedofilia, terei de provar. Do contrário destruirei a vida deste alguém. Isso não é liberdade de expressão. É crime; se eu resolver xingar o meu chefe, a minha liberdade de expressão será exercida com toda a sua exuberância na fila do seguro desemprego.
Digo sempre que se as instituições acabarem hoje, amanhã cedinho, sem falta, já começará a barbárie. Somos animais cheios de apetites e desejos incompatíveis com a convivência social saudável que precisam ser sufocados por regras muito severas, pelo bem da convivência em sociedade, pelo bem do coletivo. Sem leis e alguém para fazê-las cumprir, voltaremos não à Idade Média, mas ao tempo das cavernas. A democracia é um acordo que fazemos entre nós para que possamos estar o mais próximo possível da vida civilizada. Nunca será do jeito que você quer. Nem do jeito que eu quero.
Quanto mais civilizado um povo, mais sólidas serão suas instituições e, por consequência, mais robusta será sua democracia. Não está satisfeito? É seu direito. Quer mudar? Use a democracia, use o voto, participe de manifestações. Mas já vou avisando: usar a democracia para desmontá-la é possível, como estamos testemunhando, mas a força do espírito civilizatório cedo ou tarde irá impor sua vontade.
Compreender que os tempos difíceis também são importantes, na teoria é muito fácil. Mas viver diariamente a dor da opressão, do atraso, da violência, do retrocesso, da perda de direitos conquistados com muito custo e da insegurança sobre o presente e o futuro é, de fato, muito penoso e frustrante. A sorte, se é que se pode dizer isso, é que o ser humano é capaz de sobreviver a situações extremas, tamanha é sua capacidade de adaptação, tamanha é sua criatividade.
O importante é saber que o espírito civilizatório está em nosso inconsciente coletivo e a despeito de todo o esforço de alguns em nos fazer andar para trás, na verdade eles estão apenas criando impulso para mais um salto.