Blog do Henrique Szklo

O lamentável papel da neurociência no vale-tudo da propaganda moderna

É senso comum de que a propaganda, na maioria das vezes, se presta a nos vender o que não precisamos, mas, gostando ou não, ela é uma das molas propulsoras e mantenedoras do sistema em que vivemos, tendo se transformado inclusive em um importante agente da cultura pop.

Segundo a Enciclopédia Britânica, “no mundo antigo e medieval, a publicidade que existia era feita de boca em boca. O início da publicidade moderna veio com o desenvolvimento da impressão nos séculos XV e XVI. No século XVII, os jornais semanais de Londres começaram a veicular anúncios.”

A propaganda como indústria relevante deu seus primeiros passos após a Revolução Industrial, no século XVIII, quando a oferta de produtos cresceu de maneira exponencial e era necessário escoar a produção.

A primeira agência de publicidade, Volney B. Palmer, foi aberta na Filadélfia em 1841. Em 1861 havia 20 agências de publicidade somente na cidade de Nova York. Entre eles estava a J. Walter Thompson, hoje a mais antiga agência de publicidade ainda em atividade.

O elemento mais poderoso na publicidade é a verdade

Bill Bernbach

Na ingênua propaganda dessa época, as mensagens procuravam apenas enaltecer as qualidades dos produtos e serviços e, claro, esconder os defeitos. Argumentos primários e superficiais davam o tom dos anúncios.

Nos anos 30, porém, surgiu um profundo conhecedor da alma humana que, à sua moda, produziu uma revolução na comunicação:  Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista, que proferiu a célebre frase “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”, uma verdadeira ode às fake news. Aparentemente, a publicidade comercial não se interessou à época em seguir seu pensamento. Pelo menos não de forma estruturada e massiva.

Think small

Anos depois, nos anos 60, aconteceu a chamada a Época de Ouro da publicidade mundial, quando o publicitário estadunidense Bill Bernbach e sua agência DDB mudou os rumos do mercado, instituindo a criatividade como base fundamental da atividade, embalada com apurado senso de humor mas, principalmente, com argumentos inteligentes e poderosos. Bernbach também era um tipo de filósofo da comunicação, autor de várias frases memoráveis como “O elemento mais poderoso na publicidade é a verdade” ou “Você pode dizer a coisa certa sobre um produto e ninguém vai ouvir. Você tem que dizer isso de tal forma que as pessoas vão sentir isso em suas entranhas. Porque se eles não sentirem, nada vai acontecer”. Ele foi, portanto, um dos primeiros a perceber a importância do uso das emoções no trato com o consumidor.

Bill Bernbach

Bill foi também quem primeiro percebeu que falar a verdade mais óbvia tinha um grande poder de persuasão. Sua agência criou anúncios históricos dizendo, por exemplo, que o fusca era feio e que era preciso pensar pequeno para deseja-lo, que a Avis era a segunda colocada no mercado de aluguel de veículos, que a Mobil queria seus clientes vivos pois, se morressem, deixariam de consumir seus produtos e muitos outros exemplos do que eu chamo de honesting, ou seja, verdades confortáveis gerando imensa empatia.

A Era da Manipulação Emocional

Mas como acontece normalmente na história da humanidade, a próxima geração desvirtuou o modelo de Bernbach e iniciou o que podemos chamar a “Era da Manipulação Emocional na Comunicação”. Seu legado foi totalmente desvirtuado. A verdade e os argumentos inteligentes foram aos poucos sendo substituídos pela exploração desavergonhada de nossos defeitos: inveja, busca desenfreada por status, aspiração de fama e riqueza, modelos ideais de vida, corpo, comportamento, entre outros. Começou-se a dizer não o que a marca oferecia, mas o que o consumidor queria ouvir.

A Era da Manipulação começou como as coisas sempre começam: de forma incipiente, primária e, talvez, inconsciente de sua perversidade. Mas hoje, madura, busca nas profundezas da alma humana as formas mais abjetas de convencer as pessoas, se possível, sem que elas percebam. O ideal é que pareça que consumir aquela marca é apenas algo natural e óbvio.

Hoje, as grandes empresas de comunicação e seus fornecedores não contratam apenas publicitários, mas, também psicólogos, antropólogos, filósofos e neurocientistas para tentar garantir a efetividade de suas mensagens. É o tal do neuromarketing. O livre-arbítrio, de fato, nunca existiu em sua plenitude, como escrevi em recente artigo, mas agora ele está sendo totalmente aniquilado.

A ciência a serviço do lucro sem limites

De todos estes novos profissionais da comunicação, considero os neurocientistas dedicados ao neuromarketing os mais sórdidos. Psicólogos e filósofos não estão livres de críticas, claro, mas trabalham muito mais na base da subjetividade. Já os neurocientistas usam a ciência de forma torpe. Fazem, por exemplo, exames de ressonância magnética para detectar as reações do cérebro aos mais diversos estímulos, para assim, desvendar o mistério da motivação humana. Motivação para o que mesmo?

Calma, que ainda pode piorar. Fazem isso com crianças! Assista esse vídeo trágico para ter uma ideia do absurdo. No Brasil, pelo menos, protegemos nossas crianças muito mais do que outros países, inclusive USA, onde a propaganda para crianças é livre. Aqui, a publicidade infantil é regulamentada por algumas leis e por órgãos reguladores, permitindo publicidade só para jovens a partir de 12 anos.

Eles sabem que vendem sua alma ao diabo, e, mesmo sentindo o cheiro do enxofre, escolhem olhar para o lado.

Mas se você perguntar a alguns dos neurocientistas do marketing se eles não se sentem mal por participar de uma máquina tão insidiosa, o comentário provavelmente será o mesmo que Oppenheimer fez quando a bomba atômica, sua criação, explodiu. Disse que vieram à sua mente as palavras do texto sagrado hindu Bhagavad Gita: “Agora eu me tornei a morte, a destruidora de mundos”. Uns dizem que a frase denota sentimento de culpa e outros que foi apenas uma constatação pragmática. Independentemente disso, o homem criou a arma mais imoral da história da humanidade e, mesmo assim, provavelmente encostava sua cabeça no travesseiro todas as noites e dormia feito um anjo. No caso, um anjo da morte.

Os neurocientistas do marketing dirão que sua motivação não é a de manipular as pessoas, mas de desvendar os segredos de nossa caixa de pandora. Acontece que quem investe nas pesquisas são os grandes grupos de comunicação e sua aplicação prática de seus resultados está aí para quem quiser ver. Então, eles sabem que vendem sua alma ao diabo, e, mesmo sentindo o cheiro do enxofre, escolhem olhar para o lado.

Dinheiro não é problema

Mas o que mais me deixa indignado é que neste esforço científico para compreender o cérebro humano (iniciativa admirável e absolutamente necessária, diga-se), gasta-se bilhões de dólares,não para melhorar o ser humano, mas para vender coisas pra ele. Cada vez mais e cada vez mais silenciosamente.

O mundo está vivendo uma tremenda crise ética e moral, mas a preocupação do chamado mercado é com o consumidor e não com o ser humano. Dizem até que pessoas equilibradas não são ávidas por consumo, então provavelmente a ideia é deixar mesmo o cidadão confuso e permanentemente mergulhado em suas angústias para que ele possa buscar tratamento psicológico num shopping center ou, mais convenientemente, numa loja online.

Ano passado ministrei uma palestra e escrevi um artigo sobre a complexidade da evolução humana e da fantasia que é a civilidade. Como disse lá, não somos evoluídos, mas envernizados.

É claro que existem neurocientistas sérios e bem-intencionados no estudo do cérebro humano, mas o investimento em suas pesquisas não é nada se comparado ao que se gasta no neuromarketing.

Poste isso

As redes sociais não ficam atrás. Na verdade, ficam à frente. Usam do mesmo expediente das empresas de comunicação com o agravante de utilizarem algoritmos diretamente responsáveis pela geração das bolhas que estão fraturando as relações sociais em todo o mundo. Mas o objetivo é sempre o mesmo: aumentar o consumo, não importa com que consequência.

E graças aos neurocientistas do marketing, as redes sociais estão indo cada vez mais fundo: reconhecimento das emoções pelas feições do rosto, pelo comportamento da pupila, pelos batimentos cardíacos, pela rotina de navegação, ou seja, o processo que antes era uma tentativa de convencimento, está rapidamente se transformando em lavagem cerebral. Querem nos transformar em zumbis que se alimentam de notas fiscais.

Querem nos transformar em zumbis que se alimentam de notas fiscais.

Fala-se muito de racismo e machismo estrutural. O neuromarketing está criando o consumismo estrutural, ou seja, a construção de um modelo de fidelidade, desejo, identificação e apreço pelas marcas sem que a pessoa faça a menor ideia de que tudo não passa de um processo neural estimulado por técnicas científicas para encravar em seu inconsciente a necessidade imperiosa de consumir aquela marca, produto ou serviço.

É claro que o inconsciente sempre foi protagonista neste processo, como de fato é em todos os momentos de nossas vidas, mas jamais na história da humanidade foi explorado de forma tão profunda e desavergonhada.

Eu também já pequei

Não sou contra a propaganda, claro que não. Como quase todo mundo, tento me utilizar dela para minha sobrevivência. Já fui, aliás, participante ativo deste circo de manipulação, como redator e diretor de criação de agências de publicidade, mais ou menos entre 1980 e 2000, justamente quando o modelo era mais ingênuo, mas devo dizer que nunca me senti muito confortável. Não só pela questão de manipulação, até porque não tínhamos na época a pretensão de fazer lavagem cerebral, mas de divertir o consumidor e fazer com que ele se tornasse cliente, entre outras coisas, pela simpatia nutrida pela marca. Mesmo assim, nada disso me livra da responsabilidade por desenvolver uma relação cordial durante todos esses anos com o proprietário do inferno. Sim, também senti o cheiro de enxofre e olhei para o lado. Vergonha.

Um dos exemplos mais irritantes do modelo atual é esta infestação de cursos apresentando um método de venda de produtos digitais que prometem rios de dinheiro em pouco tempo. Você já deve ter sido impactado por alguém oferecendo um curso gratuito aonde a pessoa vai te ensinar “tudo” sobre algum assunto, utilizando com frequência a palavra VIP. Mas a realidade é outra. Na verdade, ele vai enrolar você por algumas horas para, nos últimos minutos do curso, vender o que ele queria vender desde o princípio. A antítese do honesting.

Não adianta clicar porque não tem link

Tudo começou com os “atalhos mentais”, termo criado pelo psicólogo Robert Cialdini em seu livro “Influence: The Psychology of Persuasion” onde ele afirma que “Recentemente os psicólogos descobriram uma série de atalhos mentais que empregamos em nossos julgamentos do dia a dia”. E, mais uma vez, alguém se aproveitou de um estudo científico para criar um método de venda, nesse caso de produtos digitais. Um tal de Jeff Walker criou a famosa “Fórmula de Lançamento”, alterando o termo “atalhos” para “gatilhos mentais”. Ele dá o passo a passo que garante sucesso, mesmo de quem não tem nenhuma experiência. Hein? E o pior é que, se você fizer direitinho, tem alguma chance de funcionar de verdade. Por quê? Porque o cérebro humano funciona por padrões e estrutura lógica. Se você souber leva-lo pelos caminhos corretos, vai dar a sensação ao indivíduo de que fez um grande negócio, quando, na verdade, foi mentalmente manipulado.

A ironia é que escrevo este artigo para tentar desconstruir a ideia de manipulação e um monte de gente vai procurar saber mais sobre gatilhos mentais, principalmente quem nunca tinha ouvido falar. Ou seja, graças a mim, a manipulação proliferará e aumentará seu raio de ação. Mas, pelo menos, não coloquei link no assunto.

Utopia criativa

Eu estudo o funcionamento do cérebro para tentar entender o ser humano em razão de sua criatividade e comportamento. É claro que preciso de dinheiro para sobreviver, mas posso garantir que meu propósito não é vender nada para ninguém. Minha preocupação é com o ser humano, tão imperfeito e injusto, tendo eu mesmo como principal referência de falhabilidade. Minha utopia é tentar conseguir produzir alguma melhora em mim mesmo e, se possível, nas outras pessoas, mesmo que por apenas alguns nano-centímetros. Não tenho o dinheiro nem a ilusão de que vou conseguir, mas pra que serve uma utopia, afinal? Pra fazer a gente avançar. Viva a utopia! Viva o honesting!


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Henrique Szklo

Cientista da Criatividade, nasceu em Belo Horizonte (MG), é graduado em Publicidade e Propaganda pela FAAP e pós-graduado em Neuropsicologia pela FAMEESP. Exerceu durante 18 anos a profissão de publicitário na área de criação, como redator e Diretor de Criação. Além disso é escritor, professor, designer gráfico, palestrante e palpiteiro digital. É professor do MBI da UFSCar e Publisher do Portal Mentes Criativas. Tem 8 livros publicados (humor e criatividade), é palmeirense e não-negacionista.

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