Blog do Henrique Szklo

É possível detectar o que é apropriação cultural?

Absorver elementos culturais por si só não é apropriação. Existe uma série de fatores culturais que são apenas incorporações naturais

Neste carnaval, mais uma vez um tema bastante polêmico voltou à discussão com força e apesar de ninguém ter pedido, gostaria de oferecer minha contribuição para o samba-enredo “Apropriação Cultural: O Ataque dos Colonizadores Oportunistas Contra as Minorias Oprimidas da Mãe Terra”. Pretendo colocar prós e contras do conceito e, adianto, não chegarei à uma conclusão definitiva. Não é muro não. Alguns podem se incomodar porque estamos na era da polarização, dos lados conflitantes, mas peço que se aguentem nas calças porque o assunto trata de um dilema complexo, cheio de contextos e, por enquanto, a meu ver, merecedor de larga discussão.

Antes de começar, um aviso importante: acredito de forma cabal que existe sim racismo no Brasil, existe sim misoginia, existe sim homofobia, xenofobia e outros tantos comportamentos repugnantes como descaso com índios e pobres, pra dizer o mínimo.

Digo isso porque nos dias de hoje é estatisticamente impossível ter opinião sobre qualquer assunto sem que se esteja ofendendo alguém. Basta ser a favor de algo para imediatamente se colocar beligerantemente contra o outro ou outros algos. Se acredito que a terra é plana, estou automaticamente ofendendo quem acha que ela é quadrada, redonda ou em formato de uma salsicha. Não seria apropriado, então, que os agentes culturais e influenciadores em geral tentassem traçar uma fronteira clara entre a ofensa e o mimimi antes que as diferenças se percam no tempo e o ódio se perpetue?

O que significa apropriação cultural?

Para não cometer um erro de julgamento, procurei várias fontes na internet – nacional e estrangeira – sobre o real significado da expressão. E o que pude depurar foi o seguinte: apropriação cultural ocorre quando uma pessoa de uma cultura adota moda, iconografia, tendências ou estilos de outra cultura, principalmente quando a cultura que está sendo apropriada é parte de um grupo historicamente oprimido e/ou marginalizado, sem a permissão deste e muitas vezes surrupiando sua autoria.

O termo “apropriação cultural” surgiu para descrever tudo, desde maquiagem e penteados a tatuagens, linguagem e até certas práticas de bem-estar. A frase se originou na década de 1980 em discussões acadêmicas do colonialismo e no tratamento de culturas minoritárias.

Apropriação cultural ocorre quando uma pessoa de uma cultura adota moda, iconografia, tendências ou estilos de outra cultura…

Mais que isso, é a adoção de elementos de outra cultura, e sua utilização para fins não intencionais pela cultura original ou mesmo ofensivos aos seus costumes. Ou seja, utilização de símbolos que se desconectam totalmente do sentido para o qual foram criados, ou por quem não entende o significado cultural do elemento incorporado, revelando insensibilidade e profundo desrespeito.

Os exemplos incluem equipes esportivas estadunidenses que usam nomes tribais ou imagens dos nativos americanos como mascotes; usar jóias ou moda com símbolos religiosos sem nenhuma crença nessas religiões; e copiar iconografia da história de outra cultura, como tatuagens tribais polinésias, caracteres chineses e arte celta; o cabelo hastafari ser usado sem levar em consideração o significado cultural original, enfim, a lista é ampla e, digamos, radical.

Não é considerado apropriação cultural se você estiver pegando emprestado elementos culturais diversos como roupas ou um símbolo sagrado para outra cultura, mas, direta ou indiretamente, beneficiar essa cultura. Se você compra uma pulseira feita por um artista nativo brasileiro, está respeitando e apoiando a cultura desse artista. Mas se você usar um cocar para vender um produto ou usar como fantasia, ignorando qualquer contexto da cultura indígena, essa postura será considerada altamente ofensiva.

Os defensores da causa das minorias oprimidas (se é que essas minorias se preocupam mesmo pela causa) também afirmam que os apropriadores são considerados modernos e os apropriados são esteriotipados e recebem tratamento pejorativo. Um branco usando turbante é lacrador. Um árabe é terrorista. Em termos. Nós, como uma espécie gregária e atenta demais aos outros, julgamos a tudo e a todos. Com ou sem turbante. Pode muito bem um branco de turbante ficar ridículo e ser execrado como um árabe usando turbante fortalecer sua identidade, reforçar o orgulho de suas origens e mandar pastar quem o critica. É tudo uma questão de ponto de vista. Numa discussão séria não dá para afirmar se a percepção geral vai ser uma ou outra. Pessoas são diferentes e avaliam questões de formas diferentes. A generalização é limitante.

O turbante como símbolo do movimento

O turbante, aliás, é um ponto nevrálgico de atrito entre os que apoiam e os que negam. Uma pessoa branca pode usar? Mas turbante é africano, árabe, afegão, malásio, bengalês, birmanês, indú, indonésio, nepalês, paquistanês ou o quê? Afinal, o turbante provavelmente não é uma invenção dos negros africanos. Todos os países acima, historicamente, usam turbantes por diversas razões. Quem criou? Ninguém sabe. Será, ainda, que todos aqueles que têm “direito” de usar turbantes estão realmente conectados e têm consciência do significado cultural do adorno? Ou não estão nem aí? O mesmo com dread ou tatuagens tribais? E, de novo, pessoas são diferentes. Nem todo mundo está preocupado com esse tipo de discussão. Tenho muito medo de quem toma para si questões de outros sem saber, com certeza absoluta, se estes outros querem mesmo ser “defendidos”.

Deus salve os nativos da América

As Américas, do ponto de vista dos ativistas, são campeãs mundiais em apropriação cultural. Países, estados cidades, ruas, empresas, agremiações esportivas e muito mais, utilizam nomes dos nativos da terra, aqueles mesmos que, sem perdão, foram dizimados pelos que hoje utilizam sua lingua indiscriminadamente. Tocantins, Caraguatatuba, Ipanema, Butantã e Moema, são apenas alguns exemplos brasileiros. Você, certamente conhece outras centenas. Temos, então, de abolir estes nomes de nosso convívio?

Porém, dizem os ativistas que apropriação cultural não deve ser confundida com o intercâmbio cultural, que acontece quando pessoas de culturas diferentes compartilham aspectos de sua cultura, porque aqui o elemento de dominação não existe, gerando outro termo: apreciação cultural. Segundo eles mesmos, absorver elementos culturais por si só não é apropriação. Temos palavras, expressões, moda, alimentos, músicas e mais uma série de fatores culturais que são apenas incorporações naturais, parte de um fenômeno que acompanha a humanidade desde seus primórdios.

Já a influência ou assimilação cultural pode ser considerada o outro lado da moeda da apropriação, que ocorre quando uma minoria ou grupo marginalizado se vê obrigado a incorporar aspectos da cultura dominante. Particularmente acho muito pior que a apropriação em si, se formos utilizar a mesma régua na medição dos conceitos. Neste caso específico, os elementos culturais fazem o caminho inverso. Por imposição, excesso de exposição ou por simples atropelamento. Exemplos, mais uma vez, temos aos montes: o mundo todo tem adotado a narrativa de Hollywood em seu cinema doméstico. Uma indústria poderosa, oriunda de uma potência econômica, impõe ao mundo seu modelo desde que existe cinema. Música a mesma coisa. Moda, tecnologia, espelhinhos e muito mais.

Todos aqueles que têm “direito” de usar turbantes estão realmente conectados e têm consciência do significado cultural do adorno?

O Halloween tupiquiniquim, outro. (Olhaí mais uma expressão indigena adotada pelo homem branco). E não é raro que os mais fracos sequer percebam essa particularmente indigesta forma de exploração cultural, que aos poucos vai minando a cultura local, substituindo seus elementos pelos da cultura dominante com a ilusão que se tratam de privilégios, modernidade e, para usar uma palavra bonita, contemporaneidade.

Existem coisas piores que a apropriação cultural

Estou convicto de que apropriação cultural tem sim seus exemplos condenáveis, porém, a tentativa de sufocamento e até de eliminação da cultura de um povo tem consequências muito mais graves e hediondas. A catequisação dos índios e negros pelos jesuitas ocorrida no Brasil é um exemplo dramático e traumático de violência contra os processos de construção identitária de povos com imenso arcabouço cultural. A Inquisição é outro exemplo ao obrigar todo mundo a se converter ao cristianismo, além da prática de queimar livros e pessoas. Porém, será mesmo que a utilização de elementos culturais desses povos vilipendiados nos dias de hoje tenha o mesmo propósito ou a mesma consequência de tempos antigos? Será que, ao contrário, não os fortaleça e os mantenha em evidência, comprovando sua relevância, disseminando seu valor, aprofundando discussões e sendo utilizado como eficiente propósito didático?

O próprio carnaval brasileiro, por exemplo, se apropriou da palavra abadá, que tem origem africana, do yorubá, trazida pelos malês (negros muçulmanos) para a Bahia, que era uma espécie de camisolão folgado branco. É também a calça branca utilizada na capoeira, dança/luta criada por escravos negros. Enquanto os escravos malês vestiram seu abadá branco em um levante em 1835 em Salvador, o abadá do carnaval contemporâneo é multicolorido, de gosto duvidoso, jamais branco, que se apropriou do termo para servir de passe-livre para correr atrás de trios elétricos e blocos. Levante, no caso, só de latas de cerveja.

O que a gente pode e o que não pode

Acredito que se formos exigentes na avaliação, praticamente nada escapará ao escrutínio da apropriação cultural. Será então que o consumidor de maconha deve obrigatoriamente estar conectado aos rituais xamânicos realizados originalmente com a planta? Mesmo o cigarro comum também tem sua origem nas Américas por seus habitantes indígenas. Alguém pode dizer que são drogas e como tal não merecem o mesmo tratamento de outros elementos culturais. E minha resposta seria: por quê? Querm decide o que pode e o que não pode? O fumo não era um elemento cultural sagrado para os nativos das Américas?

Falando em plantas, será que podemos utilizar as ervas medicinais dos índios para nosso próprio bem estar sem respeitar o seu significado original?

E outras: os estadunidenses e europeus podem tocar bossa nova? Samba? Os europeus têm direito de se apropriarem do estilo de jogo de nosso futebol, como o que fez o consagrado treinador Guardiola? Se vamos levar às últimas consequências, tudo o que se encaixar na definição oficial de apropriação cultural deve ser colocado no mesmo balaio. Ou não há credibilidade no processo.

O consumidor de maconha deve obrigatoriamente estar conectado aos rituais xamânicos realizados originalmente com a planta?

Muitas são as vítimas da patrulha daqueles que acreditam que existe apropriação cultural. A atriz brasileira Alessandra Negrini, por exemplo, foi criticada por usar indumentárias indígenas num bloco carnavalesco. Mas pergunto: essas indumentárias são criação de que nação indígena específicamente? Será que eles não são fruto de apropriação cultural de tribos mais fracas, que sucumbiram à dominação de tribos mais poderosas e tiveram seus elementos culturais surrupiados por elas?

Ninguém está livre

No mundo, celebridades gigantes também não estão imunes às críticas: Madonna, Rihanna, Kim Kardashian, Miley Cirus, Selena Gomes, Katy Perry, e muitos outros tomaram pau na internet. Nem o rei Elvis, vivo ou morto, foi perdoado pelo fato de um branco alegadamente ter se apropriado da música negra, totalmente discriminada à época. Será? Ele, ao contrário, não mostrou a imensa qualidade das músicas, eliminando o preconceito contra elas e consequentemente abrindo espaço aos artistas negros? Mais uma vez, não há como afirmar que uma coisa é boa ou ruim no caminhar da história que, na verdade, é um processo em constante movimento e não momentos estanques e com fronteiras delimitadas.

Falando em música negra, Elvis não foi o único a utilizá-la. O próprio rock inglês sofreu imensa influência do blues americano dos anos 30, 40. Negros extremanente talentosos, mas legados ao ostracismo à época, como Howlin’ Wolf, Muddy Waters, Robert Johnson, Sonny Boy Williamson e muitos outros, só passaram a ser reconhecidos em sua terra natal quando serviram de referências das bandas inglesas. Podemos dizer então que a apropriação cultural teve um papel importante no reconhecimento desses artistas até então obscuros? Que sem os ingleses – notórios colonizadores – ninguém jamais teria ouvido falar dos caras? Os próprios, infelizmente, não foram favorecidos por este reconhecimento tardio, mas seus descendentes e atuais bluseiros negros têm seu espaço garantido no mundo musical, assim como a grana proveniente dos direitos autorais. Será então que a luta contra a apropriação cultural muitas vezes pode prejudicar mais do que ajudar o que pretende defender?

Robert Johnson

Minha banda predileta, o Led Zeppelin, por exemplo foi além. Muito além. Se refestelaram, estes sim, na apropriação cultural. Mas no caso deles talvez devamos usar outra expressão para descrever o que fizeram. Um termo antigo mas sempre presente, o plágio, talvez seja mais adequado. Podemos associá-lo também a um adjetivo nada mais que justo: descarado. Ritmos, acordes, nomes de músicas e até letras inteiras foram utilizadas sem nenhum pudor nem crédito aos autores originais. Porém, nos últimos anos eles tem sido processados e seguidamente obrigados a corrigir seu mal comportamento, pra não dizer crime.

É inegável que os negros, talvez o grupo mais discriminado e oprimido da história, trouxeram relevantes influências para a cultura mundial, notadamente com relação à música e outras artes que exijam charme, swing e, porque não, flexibilidade corporal, como dança e esportes em geral. Por isso, para mim, uma cultura tem que ser forte, expressiva e de grande personalidade para que seja utilizada por outros grupos em outros contextos. Será, então, que a apropriação cultural pode ser, sob outro ponto de vista, considerada como o reconhecimento tácito do valor de uma cultura? E até de admiração, mesmo sendo utilizada com propósitos egoístas, mercantilistas e deslocados do significado original?

Quem controla a cultura?

Será mesmo que a utilização de elementos culturais de sociedades oprimidas sem respeitar o seu significado original é mesmo um problema? Infinitos comportamentos que adotamos hoje em dia, de forma corriqueira e automática, em algum momento da história foram sagrados para alguém. Muito do nosso comportamento atual descende de rituais que não fazemos mais ideia. O banho que tomamos hoje por questões higiênicas, por exemplo, era associado por várias culturas à ideia de purificação, de libertação do pecado. Tomar banho era um ritual sagrado, cheio de significados metafísicos. O banho é sagrado pra você hoje? Pensa nos deuses que está agradando enquanto a água desliza sobre seu corpo? A propósito, a própria palavra “sagrado” tomou outro significado, como “pra mim, o descanso semanal é sagrado”. Mais uma vez, desculpe a insistência, descansar no sétimo dia da semana surgiu como uma obrigação relacionada ao desejo de Deus, portanto, original e eminentemente sagrado.

O banho que tomamos hoje por questões higiênicas, por exemplo, era associado por várias culturas à ideia de purificação, de libertação do pecado.

A linguagem verbal, aliás, é a que mais se corrompe neste aspecto. Palavras como “gênio” e “herói” são utilizadas hoje para qualquer ação mequetrefe de alguém. A palavra “piscina” veio do latim, significando “viveiro para peixes”. “Armário” veio do latim armarium: lugar onde se guardam armas. “Salário” vem do sal, que era a moeda corrente dos soldados do Império Romano. “Autópsia” veio do grego, significando auto (de si mesmo) + opsis (exame), ou seja, exame de si mesmo. “Bater na madeira” era uma tradição pagã relacionada a espíritos bons nos protegendo dos maus.

Falando em pagansimo, muitos historiadores sugerem que o Natal, por exemplo, tem sua origem na celebração pagã do solstício de inverno desde séculos antes de Jesus. O chamado hoje reveillon, a páscoa (o equinócio da primavera, não a judaica nem cristã) e o Dia do Trabalho são outros de diversos exemplos.

Como se vê, elementos culturais, de sociedades opressoras ou não, oprimidas ou não, não são factíveis de controle. O esforço para tanto para mim, além de inútil, é sectário.

Cada um entende o que quiser

Mas nem todos os ativistas da causa são ortodoxos. Tem aqueles que acreditam que músicos e designers recebem passe livre porque estão criando arte aberta à discussão e interpretação. Isso me lembra um conceito que me parece muito pertinente neste contexto, criado pelo escritor e semiólogo Humberto Eco. Em seu livro “Obra Aberta”, Eco fala de “abertura” – a decisão do artista de deixar alguns elementos em suas obras sem um significado definido, deixando a interpretação a cargo do público – gerando um processo interativo entre público e obra. Eu levo esse conceito mais além. Acredito que, mesmo sem esta atitude intencional do artista, toda obra de arte é eminentemente “aberta”. E podemos extender esta ideia também para a cultura. O que foi pensado na origem é historicamente importante de se conhecer, mas não obrigatório.

Cultura também alimenta

A culinária é outra vítima assídua do conceito de apropriação cultural. Mas afinal, não podemos comer pizza, sopa e outros alimentos que provavelmente foram criados por pobres famintos e que hoje são até gourmetizados? Feijoada pode, ou estaremos desrespeitando os escravos negros brasileiros? E o que dizer da tapioca, da canjica, da pipoca, da moqueca de peixe, a cachaça e tantas outras delícias originais da cultura indígena.

Falando agora em comida, no Brasil, várias coisas são chamadas de jeitos diferentes em função da região. Há hoje, a propósito, uma briga feroz entre os que defendem o nome “Acarajé” contra o “Bolinho de Jesus” nome dado ao mesmo alimento pelos evangélicos. Pera lá! Se levarmos a questão mais uma vez ao pé da letra, os dois estão se apropriando culturalmente desse delicioso acepipe, afinal. O bolinho, na verdade, deriva do àkarà da África Ocidental que, por sua vez, deriva do falafel árabe – levado para o continente africano no século VII. Então quem se apropriou de quem?

A apropriação da coerência

Apesar de reconhecer a importância da defesa de povos oprimidos, acredito que em alguns aspectos o conceito de apropriação cultural não se preocupa com coerência. Descem o pau em uns, mas não em outros que, teoricamente, estão tão ou mais habilitados a compartilhar o mesmo balaio. É como aqueles que defendem que toda vida merece ser preservada, menos as baratas, pulgas, ratos e morissocas. Se formos a fundo, pensarmos friamente na questão, sem paixões, os vírus, como o Corona, também é uma vida. É, portanto, um conceito seletivo. A vida é importante, mas somente daqueles que não nos incomodam ou que têm um tamanho a partir do qual se tornem dignos de proteção?

Como quase todo ativismo atual, esse também se mantém em pé meio sem controle, sem as pessoas que cerram suas fileiras saberem exatamente o que estão defendendo, funcionando mais como moda do que propriamente uma luta consciente por uma causa que realmente seja relevante para todas elas.

Os xiitas têm razão

Entendo os intermináveis exageros dos ativistas da causa. Como em todos os movimentos que pretendam fazer mudanças de elementos culturais muito arraigados, como a luta contra racismo, o feminismo, e outros, a resistência será proporcionalmente contrária, ou até maior. Então, para que as coisas possam mudar de verdade, o radicalismo e os excessos são, mais do que desejáveis, necessários. Sem extremismo, a resistência não será rompida. É chato e por vezes muito inconveniente. Mas há que se ter paciência, pelo menos por parte daqueles que prezam e defendem a evolução da sociedade, mesmo que os temas em questão não estejam relacionados com suas lutas pessoais. Com o tempo, aliás, a tendência é que as partes encontrem um mínimo denominador comum e o equilíbrio volte a reinar soberano. Pelo menos é o que se espera. Como eu disse, nenhuma cultura faz movimentos previsíveis. Portanto, o conceito de apropriação cultural só terá apoio generalizado se resolver suas questões de coerência.

Independentemente de se poder detectar as origens de um elemento cultural, não há como negar a importância de movimentos como este. Eles traz a tona discussões sobre temas fundamentais para a evolução da civilização. Tendo razão ou não, a polêmica levantada pela apropriação cultural ajuda a nos conscientizar da necessidade de nos preocuparmos com as minorias que de alguma maneira foram vilipendiadas no transcurso da história, não só culturalmente mas das formas das mais diversas.

Não dá pra saber

A evolução da humanidade se deu e continua se dando com a miscigenação de elementos culturais. E convenhamos que não é possível estabelecer com precisão onde, como, quando  e porque a maioria dos elementos culturais conhecidos foram criados. Até porque não é bem assim que a banda toca. Elementos culturais, como qualquer coisa, não são criados do nada. Sempre, sempre são resultado de um prodigioso processo evolutivo sem controle de seus agentes. Não é decidido por ninguém nem muitas vezes perceptível, acontecendo organicamente de forma indiscriminada. Portanto, não existe autoria nem data de criação. Tudo faz parte de uma dinâmica inundada de influências das mais diversas ao longo de décadas, séculos, até milênios. Diante deste cenário, tudo pode de alguma maneira ser considerado apropriação cultural. E do ponto de vista científico, quando uma coisa é tudo também é nada.

E a criatividade com isso?

A criatividade é indispensável na formação e evolução de qualquer cultura e se estabelece com a fusão de conceitos divergentes de forma original e com utilidade reconhecida. Sem preconceito. Acredito que o comportamento dos ativistas da apropriação cultural por vezes criam limites arbitrários à criatividade, à liberdade intelectual e a auto-expressão. Aprofundam a ignorância sobre assuntos diversos, independentemente de sua importância intrínseca. Reforçam o preconceito e a discriminação, criando bolhas culturais e gerando mais preconceito, afinal, quem não é conhecido por muitos não tem valor, além do quê, o diferente é sempre uma ameaça.

Tendo razão ou não, a polêmica levantada pela apropriação cultural ajuda a nos conscientizar da necessidade de nos preocuparmos com as minorias que de alguma maneira foram vilipendiadas no transcurso da história…

Plágio é execrável, mas referência é fundamental. E influência é referência. Sem referência não existe criatividade. Sem oxigênio e ar fresco, a cultura não sobrevive nem muito menos evolui. Quem deseja o resguardo radical de uma cultura está, na verdade, trabalhando contra ela. Reitero que é preciso buscar coerência no movimento para que seus efeitos não respinguem em esferas aleatórias e que nada tenham a ver com o assunto gerando mais rejeição e promovendo o efeito contrário ao desejado.

Perguntas finais

Será, por outro lado, que não estamos falando de outro problema? Que o buraco é outro? Será que no final das contas a discussão não gira em torno de royalties? Que, portanto, se alguém que utilizasse algum elemento cultural de um grupo minoritário fizesse um depósito na conta desse grupo o problema estaria sanado? Ou pelo menos reduzido? E já vou avisando que se algum milionário explorador utilizar essa minha ideia para ganhar dinheiro, o bicho vai pegar.

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Henrique Szklo

Cientista da Criatividade, nasceu em Belo Horizonte (MG), é graduado em Publicidade e Propaganda pela FAAP e pós-graduado em Neuropsicologia pela FAMEESP. Exerceu durante 18 anos a profissão de publicitário na área de criação, como redator e Diretor de Criação. Além disso é escritor, professor, designer gráfico, palestrante e palpiteiro digital. É professor do MBI da UFSCar e Publisher do Portal Mentes Criativas. Tem 8 livros publicados (humor e criatividade), é palmeirense e não-negacionista.

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