A mente criativa, quando envelhece, perde a capacidade de ser disruptiva
Os mais velhos têm um trabalho extra para se manterem criativamente produtivos: a necessidade de se desafiar continuamente, e por um esforço de vontade, porque se depender do automático, o destino é o inexorável clichê
Assistindo ao último filme do Spike Lee, Da 5 Bloods, me ocorreu um pensamento que gostaria de compartilhar por achar relevante para a compreensão do processo criativo durante a vida de uma pessoa: como a idade vai transformando o jeito com que lidamos com a busca de novas ideias.
Preconceitos a parte, as pessoas mais velhas, ou mais maduras, como queira, adquirem um novo modelo criativo. Nem melhor, nem pior. Diferente.

Os mais jovens, por ainda não possuírem um arcabouço consistente de conhecimento, experiências e padrões, são mais livres, mais revolucionários, mais ousados. E se não são, deveriam ser. É seu momento de explorar seus limites, de se mostrarem insatisfeitos e inconformados, ou até revoltados. É hora de questionar como as coisas são feitas e de buscar novos modelos.
Como as crianças que testam seus limites agindo de forma “irresponsável” para que seus pais – ou a vida – lhes ensine o que é “certo” ou “errado”. Os jovens criativos são cientistas em seus laboratórios tentando encontrar o elixir da vida eterna. Jovens, por princípio, são disruptivos, subversivos em busca de novas realidades, de novas utopias. Muitos jovens estão sempre se desafiando, não como um desejo consciente, mas como uma forma natural de aprendizado.
O tempo passa
Aí estes jovens criativos vão envelhecendo e a pesquisa em seus laboratórios vai mudando de escopo. Seus protocolos de processos mentais vão adquirindo novas regras e procedimentos. Equipados com uma larga experiência e conhecimento, passam a buscar não a revolução, mas a evolução. Já não acham graça das mesmas piadas nem cultiam os mesmos ídolos. Entendem, consciente ou inconscientemente, que o avanço agora é milimétrico. Pequenos detalhes que vão incrementando o já conhecido. Passam a apreciar as filigranas, as entrelinhas, a profundidade invisível dos temas.
Os jovens criativos são cientistas em seus laboratórios tentando encontrar o elixir da vida eterna.
Já não têm o mesmo ímpeto alquimista. Sentem-se mais seguros e orgulhosos de seu status. Ao longo dos anos vão gradativamente abandonado a visão disruptiva. Na maioria das vezes, não por vontade própria, mas pela limitação que seu conjunto de sólidos padrões impõem à sua visão de mundo. De certa forma, sua fonte de prazer sofre uma metamorfose. Sua bússola de realização profissional muda de direção. A utopia muda de endereço.

Aqueles que tentam se manter revolucionários têm, sem sua maioria, um destino triste e muitas vezes patético. Por mais inteligentes, cultos e bem-informados, não conseguem acompanhar a linguagem do momento, aprisionados ao seu passado, onde eram os autores e controladores da linguagem de então.
Tentam, inutilmente, impor sua maneira de ver as coisas, sem perceber que suas vozes já não reverberam mais como antes. É como aqueles sujeitos maduros que vestem calças apertadas e rasgadas, usam cabelos espetados, evocam as gírias do momento e pilotam automóveis que escancaram sua tentativa de resgatar a juventude para sempre perdida. Alguns poucos criativos conseguem ainda um sopro de vida subversiva por um tempo mais longo, mas o distanciamento do ideal revolucionário é inevitável.
Ruim da cabeça
Não é incomum que um criador maduro conheça e reconheça o que é criativo na linguagem atual, o que não significa que ele seja capaz de reproduzi-la. É como um europeu numa batucada. Ele admira quem sabe, estuda, treina, reconhece o que é um samba de qualidade, mas será muito difícil chegar ao ponto de o confundirmos com um ritmista de avenida. Ao passo que se ele, o mesmo indivíduo branco e de cintura dura, tivesse desde pequeno convivido com sambistas de verdade, provavelmente a história seria outra. Os padrões que formamos ao longo de nossas vidas acabam por inviabilizar o aprendizado profundo de padrões concorrentes e correlatos.
Não é incomum que um criador maduro conheça e reconheça o que é criativo na linguagem atual, o que não significa que ele seja capaz de reproduzi-la.
Dito isso, parece que o destino do criativo maduro é a frustração e o ostracismo. Mas não é bem assim. O segredo, se é que existe algum, é compreender seu papel atual e abraçar o novo modelo que vai se configurando em sua mente ainda fértil e ativa. É como o amor de duas pessoas. Começa com a paixão e aos poucos vai se transformando. A paixão causa uma instabilidade que não queremos mais sentir. Quem deseja paixões eternas está condenado ao fracasso em suas relações. A criatividade, como o amor, também encontra novas formas de se manter viva.
Muita criatividade, mas sem disrupção
Voltando ao Spike Lee. Na minha visão, o filme é bom, mas nada que vá mudar os vetores do cinema ou da cultura em geral. O Spyke Lee que revolucionou a linguagem cinematográfica com seu “Faça a coisa certa”, não está mais lá. Hoje ele é um excelente diretor clássico. Conhece cinema, é criativo e talentoso, mas não é mais capaz de repetir a disrupção. Das duas, uma: ou porque não consegue ou porque não quer. Porque hoje enxerga o valor de uma obra de forma diferente.

Acho que não há novidade no que estou dizendo, já que nossa trajetória na vida em todas as áreas se configura desta mesma maneira. Desejos, objetivos, buscas que vão se transformando ao longo do tempo e do acúmulo de experiências. Infeliz de quem não compreende esta lei da natureza, atravessando o cabo da boa esperança sentindo o gosto amargo da passagem inevitável de tempo. Não estou dizendo que envelhecer é uma delícia, mas, inevitável que é o calendário, só nos resta buscar aquilo que ainda nos mantém com os olhos brilhando.
Fechando as portas do laboratório
Os mais velhos têm um trabalho extra para se manterem criativamente produtivos: a necessidade de se desafiar continuamente, e por um esforço de vontade, porque se depender do automático, o destino é o inexorável clichê. Quanto mais os anos passam, maior é o sacrifício. Nosso repertório vasto faz uma pressão enorme para que apenas mantenhamos a mesma forma de pensar, trabalhar, fazer conexões. Inconscientemente somos instados a acreditar que não precisamos mais de nosso laboratório. Que agora, descobridores que somos da pólvora, nossa missão como exploradores já está cumprida. E o inconsciente é muito competente em nos enquadrar, já que nem nos damos conta de que estamos sendo tinhosamente manipulados para abdicarmos da busca pelo novo.
Toda ideia nova é filha de velhos padrões.
Minha escolha, após muita reflexão sobre “estar ficando muito velho” para ser criativo, foi me dar conta de que meu talento deveria ser utilizado onde ele ainda tem relevância: no aprimoramento do clássico. Ninguém é mais capaz de manipular o clássico do que quem o conhece profundamente: seus atalhos, seus truques e armadilhas. Por isso que meu modelo de persona criativa é o estilista Giorgio Armani. Sempre clássico. Sempre moderno.
Repertório é fundamental, mas também opressivo
A dificuldade está justamente numa contradição: quanto mais sólido for seu conhecimento, maior a dificuldade de criar, pois seu inconsciente está convencido que você já sabe o suficiente. Porém, quanto maior o conhecimento, maior a quantidade de informações para buscar conexões originais. Maior a capacidade de romper com o estabelecido. Complexo, não?
Outra aparente contradição é que o processo criativo é totalmente dependente dos padrões. Só concebemos uma ideia como criativa, quando reconhecemos as conexões anteriores que foram utilizadas em sua construção. Toda ideia nova é filha de velhos padrões.

Elder lives matter
Me obrigo a buscar ideias que não me deixem confortável e que, de certa forma, ameacem meu prestígio – real ou imaginário – ou minha própria autoimagem. Mas isso é porque continuo fazendo questão de ser criativo, de manter meu laboratório funcionando, a despeito do sacrifício que isso tem provocado cada vez mais intensamente em meu velho coração. Há, por outro lado, quem se conforme com o desativação de seu laboratório. Uma escolha pessoal e intransferível que não me cabe julgar. Até porque, como ouvi uma vez Paul Newman numa entrevista, “envelhecer não é para amadores”.